EU NÃO COMO CADÁVERES
Depois dos períodos de maior opressão pelos quais a humanidade em geral passou, cada qual em seu âmbito de convivência (tais como ditaduras e proibições), o que se vê agora é que os princípios iluministas tendem a se difundir novamente. Conhecimento, liberdade de expressão, cresce o sonho do ser humano contemporâneo que quer mais do que qualquer coisa convencer-se de que tem livre arbítrio, que pode fazer o que quiser, porque a tecnologia avança e assim o permite. Cada vez mais o homem acredita ter em suas mãos o poder, o rumo de sua vida, agora que não é mais "governado" por Deus, como se acreditava na escura Idade Média. Vieram os filósofos ateus e seus pressupostos. Veio o egoísmo e o interesse próprio, já que não há ninguém que julgue os nossos atos, dizem nietzscheanos e sartrianos. A única lei é a consciência, e se não há consciência, não há erro.
Ótimas idéias, não fosse a diminuta capacidade de raciocínio que a humanidade em geral herdou do passado. Aconteceram evoluções? Certamente! Porém ela não está preparada para encarar as hipóteses de não-deus e de sua inteira responsabilidade e finitude. Ou mesmo para questionar se existe a deidade, seja ela diferente, que atue conforme as forças da natureza, se é que não é ela a própria natureza. E que todos os seres fazem parte dessa natureza. Perdeu-se a noção de familiaridade com o que é diferente, perdeu-se o que restava da igualdade entre distintos, de mesma raça ou não. E se não se respeita nem os próprios semelhantes humanos, o que se dizer dos animais e plantas?
Bebês nascem puros da mesma forma, e logo são ensinados a obedecer. Sem questionar. Os superiores é que sabem e estão repassando conhecimento.
Desde pequena desenvolvi (graças a deus, à natureza, a mim ou ao que for) a capacidade do questionamento. Quando vi alguém matando minhas galinhas de estimação e depois a carne em meu prato, percebi naquele exato momento que alguma coisa ali estava errada. Estávamos comendo cadáveres!!! E eram os cadáveres das minhas amigas!
Desde então questionava tudo quanto podia. "Por quê" virou minha citação preferida. Quando não era dita para fora, era para dentro mesmo. E aí notei que era muito mais interessante perguntar a mim mesma. Quando vi que era possível viver sem ter que comer cadáveres de animais que eu amava, me vi infinitamente mais feliz. Fiz uma escolha. Por mim mesma pensei e concluí que era injusto, imoral, não fazia sentido. Não deixei que ninguém me convencesse do contrário, embora sempre me abra a discussões sobre o assunto, sem nunca encontrar um motivo plausível para mudá-la.
Quem come carne e é feliz tem dois paradigmas. O primeiro e mais raro é quando a pessoa se convence que toda a humanidade é descartável, assim como os recursos e os outros seres. Aí então a vida é uma só e há que sorver dela o máximo em todos os aspectos. Aproveita-se do que mais lhe convém. Tem consciência de que há um bicho morto em seu prato, mas por já ter refletido sobre todo o processo e não se importar com nada disso, acaba por saboreá-lo sem culpa.
A segunda e imensa parcela populacional seguinte é a que tem os olhos abertos mas não conseguem enxergar o que não lhes é sussurrado nos ouvidos. Olha para o prato e vê um delicioso churrasco, uma maravilhosa picanha, uma tenra asinha de frango. E é só isso o que vê. Carne. Sem pensar que essa carne é o mesmo tipo de carne que está em seus braços, pernas, costas. Não pensam, simplesmente. Porque já é normal demais colocarem em seu preto algo que não tem importância. O que importa é a satisfação, a saliva, os nutrientes extremamente necessários ao desenvolvimento. O que não importa é o assassinato, o fim de recursos, a desumanidade, o método. Essas pessoas são mais controláveis que as primeiras, que formaram sua opinião através do descaso para com o mundo exterior a seus domínios. São também certamente as mais ignorantes, porque questionam o que é contrário à sua convivência habitual, sem questionar os atos que lhes foram impostos. E o pior, se zangam por isso por terem absoluta repulsa ao ato de conceber um questionamento sobre sua normalidade.
Nas festas enquanto como tomate e lazanha de vegetais perguntando-me se eles não sentem muito por terem sua vida ceifada, são pessoas deste segundo grupo que me perguntam com um sorriso pretensioso no rosto: "Mas por que é que você não come carne?". Não sou egoísta a ponto de pensar só em minha sobrevivência, e nem me subestimo parando de fornecer ao meu ser o que é de importância para minha sobrevivência. Por isso o que eu respondo e que sempre choca as pessoas do segundo grupo é:
"eu não como cadáveres."